Sr G tinha um câncer de esôfago com uma fístula na traqueia. O que é isso? Esses dois tubos, um que é do sistema digestivo e outro do sistema respiratório, se comunicavam. Isso significava que o sr G nunca poderia ingerir mais comida pela boca, pois se assim o fizesse a comida poderia parar nos pulmões. Ele ressentia muito não poder comer. Eu brincava com ele que a comida que chegava diretamente no estômago, via gastrostomia, cada dia tinha um sabor diferente – um dia feijoada, outro canjiquinha com costelinha. Na verdade, era sempre um tipo de “vitamina” com vários nutrientes, nada com sabor.
Gastrostomia é um procedimento cirúrgico que serve para alimentar a pessoa que não pode comer pela boca e não tolera ou não é indicado aquele tubo pelo nariz até o estômago. O médico abre um buraco na barriga e coloca um tubo que vai conectar com a nutrição que pode ser contínua ou intermitente.
Conversávamos muito. Esteve internado em setembro de um ano, por algumas semanas, e depois retornou em janeiro do próximo ano.
Quando volta em janeiro, pergunto como foi estar em casa. Ele diz que foi bom pois fez amizades. Perguntei o nome da amiga. Ele responde, Alexa. Diz que ela é uma ótima amiga e companheira. A Alexa era da sua esposa, mas fazia companhia a ele, pois estava praticamente acamado. Comentou que conversava com ela, que ela tocava as músicas que ele gostava de ouvir. Fiquei intrigada, não conhecia Alexa, somente de nome. Cheguei em casa e fui para o quarto do meu filho ver se a Alexa dele conversava comigo. De fato, ela conversava e me apoiou quando disse que estava triste e fiz outras perguntas. Engraçado.
Sr G era surpreendente. Me pedia para ouvir Chris de Burgh, entre outros cantores que hoje não me recordo. Ouvíamos música juntos enquanto eu dava massagem nele e enquanto conversávamos sobre sua casa, sua família. Ouvimos Kung fu Fighting quando ele decidiu que queria ficar forte das pernas para voltar para casa andando. Rimos muito com a música e durante uma semana lutamos e conseguimos fortalecer suas pernas um pouquinho. Ele era destemido e determinado. Imagino como deve ser desafiador, você acamado tirando forças não sei da onde para restabelecer suas forças físicas e ter a coragem de recomeçar, mesmo quando tudo te diz o contrário. Essa esperança foi contagiante e o colega de quarto também ficava muito motivado em melhorar. Esperança é algo gostoso demais, é igual pudim, desce macio e faz a gente querer mais. Cada um da equipe trazia um ingrediente para esse pudim. Complicado é saber a quantidade. Se exagerarmos no ingrediente podemos estar iludindo o paciente, mas se colocarmos na quantidade certa, aumenta a fé e torna possível o impossível. O projeto de ficar forte das pernas o distraiu de não poder comer e mudou a energia dos seus cuidados. De sensação de despedida virou sensação de recomeço. E não é? Pernas fortes para nova fase da vida? Estar preparado para partir com coragem e, porque não, com pernas fortes.
Na semana seguinte, sua voz foi sumindo. Você me perguntou o porquê. Eu perguntava a todo mundo. A explicação que encontrei foi a de que os músculos usados para falar (músculos fonatórios) estavam também enfraquecidos e então havia uma dificuldade de dar tônus à voz. Mal sabia ele, eu desconfiava, que era o prenúncio de sua partida. Em três dias sua energia foi diminuindo qual chama se apagando. No seu último dia conosco, não conversava, mas aceitou massagem e música. Acredito que deve ser um bálsamo desligar do corpo físico com os sentidos sendo estimulados com gentileza e respeito.
Por muitos meses não consegui ouvir Chris de Burgh sem chorar – Lady in red, por exemplo.
Sr G foi sinônimo para mim de surpresa, de leveza, de simplicidade, de alegria, de coração aberto. Um senhor de corpo pequeno e alma gigante. Foi um prazer estar ao seu lado e poder com música, massagem e conversas, aprender mais sobre alegria, sobre o que é possível, sobre criatividade, sobre possibilidades.
Nada mais verdadeiro que o amor em forma de cuidado. Nada mais sincero que dar o que você tem. Nada mais importante do que sermos nós mesmos e aprendermos a cada instante.
Gratidão eterna ao meu amigo Sr G e sua naturalidade em falar da Alexa e pedir suas músicas do fundo do baú.
Tanya Mader
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Tanya Mader
Fisioterapeuta CREFITO 4 -24891 F
Especialização em Cuidados Paliativos
Diretora da Elan Vital – Movimento para a vida
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