Glayer França Jordão
Este ano comemora-se o bicentenário da independência do Brasil. E eis que surge um projeto de encher nossos olhos: 200 anos, 200 livros. A iniciativa é da Associação Portugal Brasil 200 anos, do jornal Folha de S. Paulo e da UFMG que divulgaram uma lista sugerindo 200 livros importantes para entender o Brasil.
Vejam só: “Quarto de Despejo” (1960) de Carolina Maria de Jesus, negra e favelada é o livro mais indicado. Depois aparece na lista o “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa; A Queda do Céu de Davi Kopenawa e Bruce Albert, ambos em segundo lugar. Em seguida temos “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda; “Casa Grande & Senzala” de Gilberto Freyre e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis. São obras monumentais que segundo a historiadora Heloisa Starling “dão voz a ideias, valores e sentimentos acerca da condição de ser brasileiro”.
Quem se interessar em consultar essa lista, irá constatar livros surpreendentes, que revelam um Brasil com múltiplos olhares. E se você quiser ir um pouco mais além é só procurar a Biblioteca Pública Municipal Viriato Corrêa aqui mesmo em Araxá e irá encontrar muitos deles. Se preferir nem é preciso se deslocar até lá, basta consultar online todo o acervo através do site da Prefeitura e visualizar a capa de cada livro, ler o resumo e percorrer virtualmente todas as estantes. Mas, no momento certo, após a escolha minuciosa de seu livro vá até a Avenida Getúlio Vargas, 810, de corpo e alma e o procure nas estantes físicas e sentirá a alegria em toca-lo. Se ainda tiver alguma dúvida, não se preocupe, pois “neste imenso mundo dos livros, quantos leitores, por vezes ficam perdidos…e eis que surge o guardião, o bibliotecário amigo …Com o livro em mão é melhor tomar logo a decisão: ler na biblioteca, no lar ou qualquer lugar”. Assim escreveu Maria Clara Fonseca, diretora da biblioteca para um bando de crianças ali em visita. Então?
Foi ainda criança, quase jovem que aprendi com os livros a gostar de aprender coisas novas e sobretudo sonhar. Mas foi em casa que tive o primeiro contato com o livro. Me lembro bem de uma linda coleção das obras de Júlio Verne comprada pelo meu pai: os livros eram de capa dura, cheios de ilustrações, ficção científica e aventuras. Todos eles me levaram para um novo mundo e a um passo para a biblioteca da cidade, depois a lançar-me diante de tantos livros, como diz Alan Pauls, como um predador. As vezes não me sentia a altura e um tanto frustrado. Pois estamos sempre deixando para depois muitos livros que precisaríamos ter lido, imaginávamos assim… quantos clássicos abandonados. No entanto, curioso e sobretudo ansioso, tinha o prazer de retira-los sozinho das estantes, empilha-los sobre a mesa e ter o prazer do primeiro contato com eles. Algumas leituras estava sempre adiando…, mas um dia, acreditava, muitos viriam à tona, sem deixar nenhuma lacuna.
Jorge Amado, Aldous Huxley, Guimarães Rosa, eram alguns de meus escritores preferidos e estavam ali nessa pilha, e eu folheando quase todos já com as costas doendo. O crítico francês Roland Barthes dizia que nada substitui os júbilos e desconfortos, inclusive físicos – da leitura. Não importava a ordem, o gênero. Quantos livros foram deixados e nunca lidos. “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust foi um deles. Não conseguia ler todos os volumes da obra, apenas um, mas o que li nunca me sai da memória. É emocionante: “Talvez não haja, em nossa infância, dias que tenhamos vivido mais plenamente do que aqueles que acreditamos ter perdido sem vive-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido.”
Não se aflige, nada é pra já. Italo Galvino diz que o encontro tardio com um clássico é sempre confortante: “Ler pela primeira vez um grande livro na idade madura é um prazer extraordinário.” Lembro de minhas férias há pouco tempo em que finalmente resolvi ler “Crime e Castigo” de Dostoievsky, em duas semanas o devorei, ele me fez tão bem e pensar que sempre o guardava para depois. Agora quero ler desse autor “Os Irmãos Karamazov”, pois tantos autores que admiro dizem ser o seu livro preferido. Há de chegar a ocasião certa. Quero também reler “Visão do Paraiso” de Sergio Buarque de Holanda, principalmente pelo trecho em que menciona a banana como o fruto proibido de Adão e Eva, de acordo com Gândavo, um dos cronistas dos primeiros tempos do Brasil.
Hoje em visita a Biblioteca Pública Viriato Corrêa em Araxá dou de cara com uma escada tentando me seduzir e conduzir-me pra algum lugar. Em cada degrau uma importante obra literária brasileira é estampada. Maria Clara Fonseca quer que subamos e venhamos a conhecer Viriato Corrêa, contista, poeta, teatrólogo, jornalista e romancista. Araxaense? Não. Nasceu em Pirapemas em 1884, no Maranhão. Agradou tantos os adultos (autor de “Novelas Doidas”) com narrativas históricas, quanto o público infantil ao publicar “Cazuza”, retratando sua infância, curiosidades e costumes de sua época. Foi um livro inovador e é considerado um clássico infanto-juvenil. Não sei, talvez o famoso Cazuza, cantor e compositor brasileiro da década de 80, autor de “O Tempo Não Para”, recebeu esse apelido pelas histórias de Viriato. Em 1938 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras até 1967, ano em que faleceu. Para a incansável Maria Clara já é tempo do araxaense conhecer este homem. (Em vão tentou levar sua bonita história ao Fliaraxá deste ano). Suba apenas vinte e um degraus e irá dar de cara com Viriato, afinal ele é o patrono de nossa querida biblioteca, ora bolas.
Maria Clara tem outro feito curioso e importante ao tornar a biblioteca também portátil: criou com certa persistência e ajuda financeira de grandes empresas, a Biblioteca Móvel: Um ônibus velho, reformado e seguro vem percorrendo os bairros da cidade levando e emprestando livros. Em 20 anos foram 26.211 empréstimos.
Este projeto literário sobre 4 rodas tem um feito notável, pois consegue despertar o interesse pela leitura e emprestar tantos livros quanto a Biblioteca da Avenida Getúlio Vargas. E olha que esta tem mais de 45 mil livros em seu acervo.
A biblioteca Pública Municipal de Araxá Viriato Corrêa é a instituição cultural mais antiga da cidade. Este ano irá comemorar 72 anos e já passou por diversos endereços (me lembro de três), mas os livros que amamos não nos deixam, permanecem, seja para onde forem levados e abrigados, obras que de alguma maneira conquistaram nossa afeição.
Mesmo que o prazo de validade de leitura de alguns livros tenha vencido, há outros que continuam a nos sondar e pedindo uma releitura, como o “Naufrago Voluntário” de Alain Bombard, que só encontrei na Biblioteca de Araxá, quando achado no google está com um preço nas alturas. Ou “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Machado de Assis. Seria um presente dado a mim mesmo para este ano. Sempre achamos que deveríamos ter lido mais, o tempo voa mesmo. Até Harold Bloom admitiu que “quem lê tem de escolher, pois não há tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça nada além disso”.
Hoje com as novas tecnologias digitais, o e-book e o audiolivro tem conseguido muitos adeptos e não há dúvida que podem ser bons companheiros em certas ocasiões, como em longas caminhadas. Muitos dizem que o livro tem seus dias contados, mas não é bem assim, muito pelo contrário: o mercado de livros fechou o ano de 2021 com saldos positivos em relação ao ano anterior quanto ao volume de obras vendidas. O mercado editorial brasileiro tem superado as expectativas. Em 2020 foram vendidos 41,9 milhões de livros; em 2021 foram 55 milhões.
Depois de subir os 21 degraus da escada e se encontrar com Viriato Corrêa, dê uma boa folheada em seus livros e mais alguns passos adiante verá uma ampla sala, funcionários trabalhando em silêncio e mesas com montes de livros para serem catalogados ou recuperados como pinturas valiosas. Entre eles há um do genial escritor Rubem Fonseca e a crônica “Sob o feitiço dos Livros” onde descreve que o seu mundo seria muito pobre “se em mim não estivessem os livros que li e amei…Os livros que amo não me deixam. Caminham comigo…Escrever e ler são formas de fazer amor”.
Muitos desses livros ali irão algum dia descer para as estantes físicas e em suas estantes “bem enfileiradas e organizadas ficaram de prontidão até passar a solidão que busca de boa companhia… E não se esqueça, cada escritor está esperando, ansioso por essa conversa…e ele só consegue dialogar com quem abre o coração e a cabeça”, diz Maria Clara Fonseca, eterna guardiã de nossos livros.
Por fim, não me resisto em citar o escritor e professor da UFRJ, Felipe Charbel ao afirmar que quando mais lê mais se dá conta de tudo que ainda há para ler…e se todos lêssemos as mesmas coisas, e do mesmo jeito, só haveria um único leitor…materialização de uma cultura fechada em si mesmo, estática, morta. E ele completa: “Ler é uma escolha. Deixar para depois, também”. Boa leitura para todos.