Eu iniciei meus trabalhos no hospital com uma vontade imensa de aliviar o sofrimento das pessoas gravemente doentes. Andava por vários andares e passava por inúmeros corredores, circulava por diferentes enfermarias. Fazia o que chamamos de busca ativa, isto é, ia conversar com os médicos procurando pacientes para o programa de cuidados paliativos.
Depois de alguns dias passando na frente de um quarto onde via uma moça jovem careca com a cabeça enfaixada e sozinha, perguntei para a equipe da oncologia quem era a paciente e se podia ir lá atendê-la.
Ela tinha 38 anos, diagnóstico de glioblastoma – tipo de câncer no cérebro. A equipe então me disse que teria sim indicação da abordagem dos cuidados paliativos. Iniciei o acompanhamento dessa moça primeiro sondando com a equipe o porquê de estar sozinha. Eles disseram que a família não queria vê-la naquela situação e por isso não estavam vindo do interior para visitá-la ou mesmo ficar alguém de acompanhante.
Acredito que todos deveriam ter o direito de estar acompanhados em momentos de tantos desafios, por mais que a pessoa esteja sem muito contato (olhos fechados, sem falar e sem se movimentar). Então, mobilizando a equipe e fazendo as ligações necessárias, conseguimos tocar a família para vê-la.
Soraia* foi visitada por uma sobrinha que ficou alguns dias lá no hospital. Perguntei se a tia era vaidosa. Disse que sim, mostrou foto – moça linda de cabelo comprido, sorriso largo, unhas feitas. Contei a ela que a tia podia ouvir, mesmo estando sem responder, e então ela começou a trazer louvores para ela ouvir. Eu disse também que ela poderia pintar as unhas da tia. No dia seguinte as unhas das duas estavam feitas com esmalte vermelho e combinando as duas. Achei lindo!!
No dia que a sobrinha disse que iria para casa, avisei que estava bem perto do dia da tia falecer. Alguns sinais são muito comuns e nos ajudam a nortear ações e intervenções de cuidado. Sabia que a Soraia tinha poucos dias de vida. A sobrinha quis ir embora mesmo, justamente para não estar lá quando a tia viesse a falecer. Super compreensível. Algumas pessoas conseguem ficar perto quando tudo está muito desafiador, outras preferem ficar longe.
Dois dias depois os pais decidiram vir. Foi um encontro lindo com “eu te amo” e “sinto muito”. No dia seguinte o ex namorado veio. Chegou minutos após o último respiro da paciente. Ele ficou extremamente triste de não ter chegado a tempo de falar com ela o que queria.
Estágio final de doença é imprevisível, às vezes. Não há dia, nem hora. Paciente pode piorar de uma hora para outra ou mesmo apresentar uma melhora súbita e enganar a todos, vivendo mais dias ou semanas. (Depois conto outra história sobre esse tema.)
Soraia partiu tendo convivido um pouco mais com quem a amava e isso nos alimentou a alma. Nós, profissionais de saúde, gostamos não somente de fazer o bem, aliviar sintomas, mas também promover o bem, favorecer encontros, abraços e otimizar esse tempo tão precioso que temos.
Vocês já pensaram que tempo é algo democrático demais. Todos recebem 24 horas para curtirem o dia. Cabe a cada um de nós aproveitar da melhor maneira possível, seja no trabalho, no lazer ou durante os desafios.
Desejo que possamos compreender que presença é presente! Mesmo sem falar, interagir como estamos acostumados, podemos nos conectar com a pessoa que está doente, por meio do toque, cheiro, fala/música. Vale a pena deixar nossa ansiedade de lado, nossa vontade de receber uma resposta de lado e simplesmente, ficar do lado. Desejo também que todos aproveitem melhor as horas do seu dia e usem os sentidos para amar e cuidar.
*Nome da paciente foi trocado para preservar sua privacidade e da família.
Tanya Mader
Fisioterapeuta, massoterapeuta, palestrante, escritora, paliativista, mãe, filha, irmã, namorada, amiga, voluntária.
Entusiasta da vida, ama movimento e escrita. Busca qualidade de vida e alívio de sofrimento.
Ama dançar, cantar, abraçar, ler, ouvir música, curtir a natureza e sorrir. Está aqui para servir e ser feliz!
Adoro seus textos. Você sabe tocar a alma de quem os lê. Parabéns.
Achei muito emocionante como a expressao de amor foi tao sutilmente reativada, de forma a gerar momentos que vao ser lembrados para sempre pelas pessoas que puderam participar nessa despedida.