Há exatamente 70 anos teve início a viagem do grande escritor mineiro Guimarães Rosa pelo Sertão de Minas e o contato mítico com a cultura dos boiadeiros.
Foram percorridos 240 quilômetros levando cerca de 300 cabeças de gado durante dez dias, tendo os vaqueiros amarrados ao pescoço um berrante e no de Rosa uma caderneta para anotações. Durante esta empreitada, tudo ali era anotado: o que via, sentia e ouvia, nada escapava em seus diários.
No dia 16 de maio, o escritor chegava a fazenda Sirga, de seu primo, em Três Marias. A boiada partiria para a viagem com paradas em várias cidades e vilarejos da região e Rosa fazia questão de acompanhar o dia-a-dia dos vaqueiros, comendo da mesma comida, carne seca, feijão com toucinho e dormindo nos mesmos lugares. Certa vez dormiu num grande tacho para fazer rapadura ou dormindo em colchões de palhas.
Na época a revista O Cruzeiro decidiu acompanhar um trecho dessa viagem e registar em fotografias a saga dessa incrível jornada, pois o escritor já era conhecido pelo lançamento do livro Sagarana de 1946.
Depois, vivendo como diplomata as reminiscências, fruto de todas aquelas sensações, dificuldades, a conversa com os boiadeiros, os sons, os cheiros e as cores da natureza iriam contribuir para a sua criação e proporcionar ao mundo literário uma obra admirável.
Para os grandes homens, algumas viagens entram para a história e também para a literatura e foi o que aconteceu com este notável escritor, tal como com Homero e Dante. Para Guimarães Rosa a viagem, impregnada de cores e sons, foi de importância vital, um corpo a corpo com o sertão e os seus atores. Entendemos assim os homens e todos os elementos naturais. Tudo que brotou dessa travessia serviu como elementos e suporte para suas obras – como Corpo de Baile, Tutameia e Grande Sertão: veredas. Em suas páginas evidenciamos a sua paixão pelo mundo natural onde céu, água, terra e fogo se entrelaçam em cada capitulo.
UMA VIAGEM DE DESCOBERTAS
Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa, foi também etapa final de sua viagem. Hoje conta com um museu em sua homenagem e onde os estudantes vão conhecer e admirar seu filho mais ilustre, um dos maiores escritores do Brasil.
É intrigante como um intelectual, diplomata, médico e de vasta cultura humanística, vindo do interior, um criador incansável em busca de uma linguagem nova e em constante mudança, no sentido metafísico, estabeleceu uma proposta viva a partir de indivíduos e de espaços reais. E, surpresos, os estudantes vão constatar tristemente que o sertão não é mais o mesmo, pois a maior parte do cerrado mineiro já foi destruído. Mas, mesmo assim ainda não foi desencantado pela modernidade. Pois, curiosos que são e ávidos por novas aventuras, os estudantes irão abrir os livros expostos ali no museu e se encantar pelo mundo de Guimarães Rosa e seus personagens.
De como, por exemplo, Riobaldo aprendeu com Diadorim a apreciar e observar algumas belezas da natureza, como o aparecimento das aves em busca de comida. “Até aquela ocasião eu nunca tinha ouvido falar de parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera dos pássaros, em seu começar e descomeçar dos voos e pousação”.
Em cada trecho de suas anotações pelo cerrado mineiro as palavras de Guimarães Rosa procuram resgatar cada pedaço de chão. Com o olhar atento o escritor retrata o sertão com tonalidades diversas como se fosse uma pintura.
O ritmo da vida dos vaqueiros, suas alegrias e suas aflições, faz coro com o ciclo dos fenômenos da natureza. O comportamento de algumas aves, como a perdiz, o sabiazinho ou o curiango são percebidos como sinais de chuva. E quando o sapo começa a coaxar significa que vem chuva pelo sertão. Até mesmo o comportamento das vacas auxilia nessa tarefa. Quando os córregos deixam de ser apenas um filete e começa a “tomar água” indica o início das chuvas. Assim era o calendário anual dos antigos. Hoje a coisa mudou um pouco, não é mesmo?
Esta madrugada, deitado, via a lua, já baixa, lua cheia pronta a ir-se. Poente da lua cheia (ainda alto, eclipsado). Depois…as nuvens cinzento-verde, leve; Hora em que as nuvens refletem os verdes do mundo. Depois elas ficam azul e rosa.
Ao nascente surgem as barras do dia. Algumas estrelas. Galos cantam…A lua poente, alta e branca no céu azul.
…E sua jornada épica pelo sertão continua e Rosa passa a descrever os dias claros cheios de sons e cores da natureza, e as noites cobertas de estrelas no liso do céu, os sons de violão e grilos.
A visão se limita a algumas silhuetas negras, a lamparina acesa, pequeninos focos de luz como o vermelim de um cigarro
O escritor faz de uma flor a um musgo numa pedra, de um filete de água a uma ave a imensidão de um sertão sem fim. Suas descrições de tudo o que vê são demoradas, minuciosas e eternamente afetuosas. Um monte de capim, um bando de juritis, uma flor, uma vaca, bois que se confabulam entre si a respeito dos homens e suas mãos, são narrados de forma amorosa. Os seres naturais passam a sujeitos-atores, seres encantados.
Percebe-se um escritor naturalista com linguagem de forma intensa e poética. Ele soube expressar a natureza como nenhum outro no Brasil. Onde a trama da vida do sertanejo está entrelaçada à natureza; Cultura e ambiente formam um único ser.
Por falar em cultura, há em Rosa a descrição também do lado feroz na natureza. Com as vacas, por exemplo, este animal sempre acompanhando o homem pela história: a figura do diabo quando aparece no comportamento de “4 novilhas bravas- isto é o diabo puro” …” o gado no pasto mais estraga de pisar que de comer”. Nesse sentido estão presentes os aspectos objetivos e subjetivos em sua criação literária.
PERSONAGENS
Guimarães Rosa não dissociava a cultura, o homem e os animais e pelo Sertão de Minas ia construindo e reconstruindo saberes, culturas e identidades. Como referência à jornada de 1952 há uma obra primordial que é Corpo de Baile. Aí, o personagem Manuelzão, inspirado na vida de Manuel Nardy, entre tantos vaqueiros da comitiva, pode ter sido definitivo para a criação singular de Rosa. Na vida real, Manuelzão ficou órfão cedo e fugiu de casa e seu primeiro emprego foi de cozinheiro de tropa. Quando Guimarães Rosa o conheceu, ele já tinha vasto conhecimento do sertão mineiro e passou a admira-lo por sua simplicidade e respeito pelo sertão.
O escritor então mescla realidade com ficção e se sai muito bem, coisas que só os gênios sabem fazer: As semelhanças entre o verdadeiro Manuelzão e o do livro vão além do nome. Manuelzão resolve construir a pedido de sua mãe que acabara de morrer, uma capela em suas terras e inaugurada com uma grande festa. A capela ainda existe e a festa foi romanceada.
Zito foi outro vaqueiro que se destacou durante a viagem. Era ele que seguia o tempo todo ao lado do escritor e não entendia muito bem o que escrevia tanto naquela caderneta e o que sabia mesmo era servir como guia e cozinheiro da tropa e estava ali pronto para tirar qualquer dúvida de Guimarães Rosa.
Devido a sua curiosidade e inteligência, chamando muito a atenção de Rosa, recebeu uma homenagem em Tutaméia, onde descreve trechos de conversas com o vaqueiro.
Por fim, é sempre oportuno constatar a presença marcante da natureza na obra literária do escritor mineiro nos dias de hoje, onde o sertão cerrado cede maisespaço para a expansão da agricultura e pecuária. As veredas, este frágil oásis do cerrado, tão grandiosamente retratadas por Rosa, estão em agonia. Na verdade, todo o bioma Cerrado está confinado em pequenos trechos, incluindo toda a região do Grande Sertão do escritor. O que ainda resta, está bem desfigurado. Este espaço mítico não passa hoje da memória de um tempo passado.
E lá se foram 70 anos de Guimarães Rosa e os vaqueiros pelo sertão mineiro onde todas as coisas, plantas, os animais, e os homens se comungavam do mesmo chão numa intensa vida cheia de beleza.
Mesmo hoje, o Sertão, possuidor de uma brasilidade única, um lugar fora do tempo, ocupa um lugar especial em nosso imaginário. Onde Rosa o descrevia com muitos papagaios no voo loiros…Cheios de serras, de verde e azuis…Longíssimas, doçura de paisagem.
Excelente texto. Gumaraes é um gênio, um típico mineiro contador de histórias. Uma situação específica que me faz ser ainda mais um admirador é o fato ter salvado muitos judeus durante a segunda guerra, quando era embaixador do Brasil , na Europa.
Tenho muito orgulho de ter esse nome em nossa literatura.
Olá Gustavo
Obrigado pelo elogio. Boa observação a sua sobre a inestimável ajuda de Rosa e sua esposa em relação aos judeus.
Guimarães Rosa é realmente um dos maiores escritores do Brasil.