Mártires, iluminados e até mesmo engraçados
Há uma história atribuída a São Lourenço atípica à falta de humor no cristianismo. O santo foi condenado a morte de forma cruel e colocado em uma grelha para ir queimando lentamente. Num certo momento teria dito ao carrasco: “Pode me virar agora, pois este lado já está bem assado”. Ironicamente, São Lourenço é considerado o padroeiro dos humoristas.
Perguntamos, o que é a vida? Dada a necessidade que o ser humano tem para superar a finitude de sua existência, mas sem o medo da morte, como é o caso deste santo, o riso provavelmente servia para alguma coisa. E como! Mesmo tendo uma vida cheia de atritos com o império romano dedicada a ajudar os pobres, São Loureço procurava encarar a vida com um espírito mais leve.
Não somente os cristãos têm como devotos ou admiradores grandes homens que se tornaram santos pela igreja católica. Freud, um ateu confesso, percebia que muitas das grandes mentes que admirava eram homens de fé e São Paulo, segundo o psicanalista, era o maior deles e permanecia incomparável em toda a história.
O que despertou a atenção de Freud foi a determinação de Saulo, como era chamado antes de sua conversão cristã, quando uma luz ofuscante, seguida de uma voz divina veio mudar sua conduta. “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, teria ele ouvido. “Quem és, Senhor?”, foi sua resposta, atônito. “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.”
Isso para ele foi uma espécie de rito de passagem, uma mudança radical de vida. E hoje, muitos estudiosos e filósofos encaram essa experiência como um exemplo a ser seguido. Há uma hora que resolvemos mudar nossa vida interior que não vai nada bem. Saulo a partir desse insight, dessa visão súbita, adota um novo nome e passa a se chamar Paulo, de perseguidor de cristãos passou a ser um deles. Está claro que é um simbolismo, uma nova maneira de encarar a vida.
São Francisco de Assis adota atitude semelhante. Sua epifania surge quando meditava nos arredores de Assis, na Itália, e ouviu claramente uma voz que lhe dizia: “Vá escorar minha igreja que está desabando”. Tanto Paulo como Francisco, pertenciam à elite. Paulo como oficial romano e Francisco, como filho de uma família abastada de comerciantes resolvem mudar de vida radicalmente. Francisco renuncia o luxo e a riqueza para servir os doentes e os pobres e seguir em favor da vida cristã.
A semelhança entre ambos está na conversão existencial. Escolheram em difundir o amor de cristo e se preocupar em direcionar seus seguidores a outros valores espirituais ao se despojar dos excessos materiais e seguir os ensinamentos de Jesus.
Paulo tornou-se protagonista da evangelização e sistematizou os preceitos cristãos, consolidando além de uma doutrina, uma religião. Não fosse Paulo talvez o mundo não conheceria Jesus. Sua conversão na estrada de Damasco se deu após os primeiros anos da morte de Jesus e inicia suas jornadas missionárias para difundir a fé cristã e propagar uma religião. Isso se deu a cerca de 2.000 anos.
Francisco de Assis, 1.100 anos depois veio renovar o catolicismo de seu tempo fundando a ordem mendicante dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. Francisco, como um simples frade, com seu modo simples de viver, com sua caridade e o amor pelos homens e animais passa a influenciar toda uma religião.
Ao vender todas as suas mercadorias, herdadas de um pai muito rico e dar tudo aos pobres, reformar uma capela e sobretudo eleger a pobreza como ideal religioso e de vida, isso, é claro, incomodou muito a Igreja católica.
Em sua época, também o trabalho de Paulo passa a importunar os romanos que viam os primeiros cristãos como um bando de arruaceiros. Tudo isso poderia colocar em risco a hegemonia política do sistema. Enquanto Paulo deu a base para o cristianismo tornar-se universal, Francisco, séculos depois, chamou a atenção de uma Igreja cheia de poderes e riquezas.
Hoje, sejamos cristãos ou não, frequentemos ou não algum culto temos na oração de São Francisco um convite a uma verdadeira conversão existencial, elegendo Jesus Cristo ou não como nosso guia As pessoas de boa vontade hão de achar em suas palavras verdades profundas e libertadoras, sem rótulos e prazo de validade, um convite a paz interior como pragava também o Buda.
A Santa Libertadora
Eis que surge também uma outra personalidade para desconcentrar a mentalidade da Igreja ocidental. Ela é Santa Edwiges, contemporânea de Francisco de Assis. Eles tiveram em comum os mesmos ideais – a pobreza em nome de Jesus. Assim como Francisco, Edwiges tem uma multidão de devotos, mas o seu culto se reveste hoje de forma bem peculiar para os brasileiros como a libertadora dos endividados.
O jornalista e devoto Toninho Vaz em seu livro “Edwiges, a Santa Libertadora” nos revela, através de narrativa fluente, toda a atmosfera da Baixa Idade Média na Polônia e a vida excepcional dessa duquesa, guerreira da paz, numa época em que a população só conhecia a violência e a fome. Assim como São Francisco, tornou-se famosa na Europa por sua compaixão para com os miseráveis. Mesmo tendo nascido em berço nobre, ficou conhecida como a mulher que dedicou a vida à proteção dos necessitados e endividados. E a história cristão reconhece incontáveis relatos de milagres atribuídos a Edwiges. Por isso vimos em todo mundo uma devoção em massa de fieis. As missas celebradas em seu dia no Rio de Janeiro ou em São Paulo estão sempre lotadas.
Até aos 6 anos Edwiges de Andech viveu num castelo na Alemanha onde nasceu, depois teve sua formação religiosa num mosteiro. Casou-se aos 12 anos com um príncipe e mudou-se para a Polônia. Desde cedo, Edwiges, muito bonita, despertava em todos certos encantamentos pessoais e adotando atitudes humanitárias até dedicar-se em tempo integral à assistência social, fundando hospitais e mosteiros para a formação religiosa de jovens.
Sua vida foi marcada por diversos problemas familiares, traições e discórdias envolvendo grandes fortunas. O seu povo sofria com sucessivas guerras e invasões. No entanto, os membros da Igreja viviam no luxo e na fartura e muitos possuíam títulos de terras. Edwiges optou por empregar toda sua riqueza em obras sociais.
Por volta de 1.220, Edwiges fundou um mosteiro para formação religiosa e para atender os mais carentes com a vinda de frades franciscanos vindo de Assis, na Itália. No mais, era carinho, remédios e comida para os mais pobres e enfermos. Vemos assim o impacto que a doutrina de São Francisco teve em Edwiges.
Em 1.234, a última obra de Edwiges, uma das maiores iniciativas sociais da Idade Média, um mosteiro administrado por monges foi atacado e destruído pelos mongóis. Era um período de fúria e violência. Seu filho morreu em numa batalha sangrenta e logo após o seu marido, o príncipe Henrique, de uma grave infecção.
Mulher massacrada pela tragédia pessoal e pelo monumental trabalho de devoção social. Edwiges, depois de passar a vida lutando por justiça e paz, foi canonizada em 1.267 – 24 anos depois de sua morte. E muitos foram os milagres acontecidos após sua morte que justificaram sua canonização. É a padroeira da Polônia e o seu culto no Brasil continua muito popular por estar ligada a um problema crônico no nosso país: a falta de dinheiro.
As Tentações de Santo Antão
Assim como os dois santos citados a cima, Santo Antão também abriu mão de tudo o que tinha para seguir Jesus. Só que ele levou a coisa bem ao pé da letra mesmo. No princípio, diferentemente de Francisco ou Edwiges, Antão não quis saber de maneira alguma socializar-se com os pobres e provendo-os do necessário. Viveu por volta de 251-356, é considerado o pai dos monges cristãos e inventou o modo de ser de um eremita com seu elevado modelo de espiritualidade ascética.
Mas, primeiro é bom esclarecer: Antão é uma versão menos comum de um nome bastante conhecido- Antônio. Os dois nomes significam a mesma coisa, vem do grego “ánthos”, aquele que floresce e as vezes confundimos um e outro. No Brasil é conhecido também como Santo Antônio Abade e não tem nada a haver com o Santo Antônio de Pádua, o santo casamenteiro.
Pois bem, Antão nasceu no Egito em 251, tinha 20 anos quando seus pais morreram e herdou todos os bens da família e uma irmã para cuidar. Ao participar de uma liturgia, ouviu as palavras de Jesus: “Vai, vende tudo que tens, distribui o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu; então, vem e segue-me!” Essas palavras atingem o jovem, coloca sua irmã num convento, vende sua herança e vai para o deserto jejuar e orar. Antes de iniciar sua vida de eremita, ele primeiro se tranca num castelo abandonado sem nenhum contato com o mundo. Só ele e Deus. Mas o atormentado homem encontra-se também consigo mesmo e é confrontando com seus demônios, com suas tentações carnais e com sua própria sombra existencial. Ao passar diante do castelo, as pessoas ouviam muita gritaria, uma luta travada entre seres furiosos e barulhentos. Uma disputa horrível, os demônios lançam-se sobre Antão, mas ele bravamente resiste.
Passado um tempo, quando pessoas preocupadas arrobam as portas do castelo o que presenciam atônitos é um homem calmo, em profundo mistério e apaixonado por Deus. É assim que Santo Anastácio o descreve em sua biografia, contando em detalhes as provações, os sofrimentos, sua ascensão e milagres.
Mas as tentações não o deixaram em paz por muito tempo. Ele então, retira-se profundamente para o deserto. Por entre penhascos e areia, o pretenso santo, vagueia em busca da perfeição. O escritor francês Gustave Flaubert em sua notável obra “As Tentações de Santo Antão”, de 1.874, descreve este homem enfrentando seus demônios internos, a luxúria e a morte no deserto, repleto de “personagens” e “fantasmas”.
Dessa vez suas provações e lutas contra o diabo são mais atrozes. “De noite, era dilacerado por garras, picado e roçado por asas macias, os demônios uivando nos meus ouvidos me atiravam no chão”. O diabo ataca a fé do solitário com doutrinas e crenças contraditórias. O livro é uma alegoria da alucinação de um homem que procura a santidade. Todas as tentações do Demônio oferecidas a Antão foram esgotadas, só restando o amor juvenil para seduzi-lo. Finalmente, depois de uma luta sobre-humana, vence seus demônios. É socorrido por uma caravana que ia para Alexandria e o leva junto.
De volta à civilização, Santo Antão, sereno e de alma límpida, já não era mais aquele carrancudo e de mal humor. Com grande vigor e saúde passa a regulamentar o trabalho comunitário, as orações e penitências de seus seguidores. Seu exemplo fez escola. Por volta do ano 300, forma muitos discípulos, sendo possível encontrar eremitas em todos os lugares no deserto. Vencendo suas provações, rezando e jejuando sozinho, Santo Antão compreendeu depois de passar 20 anos no deserto que só a oração não é completa, ou seja, sem o amor e a caridade. Passou então a confortar os seus discípulos que viviam nos mosteiros.
Viva São João
O mês de junho em todo o Brasil é marcado por muitas festas para celebrar e homenagear São João. Enquanto dançam e comem milho, amendoim e tomam quentão, é bom recordar quem foi este santo surpreendente que deu origem a estas festividades tão animadas, tanto aqui como em Portugal.
Depois de 2 anos devido as restrições da pandemia, Portugal e Brasil retomam as festas dos santos populares. Com muitas bandeirinhas, comidas e fogueiras, esses países celebram e homenageiam Santo Antônio, São Pedro e principalmente São João, durante todo o mês de junho. Mas não custa nada lembrar que o São João da Igreja católica, primo de Jesus, foi o santo mais próximo de Cristo e quem o batizou nas margens do rio Jordão. Vivendo como um nômade, pregando por toda a Judeia, conseguiu cativar as pessoas para se batizarem. Seu modo de vida simples e despojado, assim como o de São Francisco e Santo Antão incomodava muita gente e por ainda exigir das pessoas o caminho da luz ao anunciar a vinda de Jesus, o verdadeiro messias.
A festa junina, uma das maiores tradições brasileiras mais populares surgiu na Europa como uma festa pagã. Muito antes da tradição cristã, no território onde hoje fica Portugal, os celtas já comemoravam a colheita no solstício de verão, o dia mais longo do ano. As festas católicas passaram então a incorporar e dar novas interpretações às alegres manifestações populares.
Se os celtas inspiraram os portugueses dando origem a festa desses Santos, quando chegaram aqui, já no início do século XVI encontraram uma tradição indígena de comemorar a colheita que acontece em junho. “Então, o que eles fizeram foi dar uma característica mais cristã às celebrações que já existiam”, diz a historiadora Eliane Morel da Unicamp.
E nada como a comida para simbolizar a fartura e tornar-se um componente muito forte de sociabilidade entre as pessoas. Em Portugal a sardinha na brasa é a estrela da festa, pois é o período em que a pesca é mais abundante. No Brasil o cardápio vem das tradições indígenas, são os quitutes feitos com o milho, a mandioca e o amendoim. E dos portugueses incorporamos o açúcar e a canela. É o caso da canjica e do arroz doce, hoje bem brasileiros.
Epílogo
Pouco antes de morrer, Edwiges tinha os pés com terríveis feridas. Mas assim que deu o último suspiro, subitamente o seu corpo passa por estranha metamorfose, assumindo um tom róseo e saudável e um perfume se exala no ar. Os estigmas foram desaparecendo. Este é o primeiro milagre depois de sua morte.
São Lourenço foi condenado a morte quando era diácono da Igreja, fiel ajudante do Papa. O imperador de Roma da época, depois da morte do Papa, exigiu que a Igreja lhe entregasse todos os bens dentro de 3 dias. Vencido o prazo, Lourenço foi até ao palácio, apresentou uma leva de pobres e enfermos e disse ao imperador: “Estes são os bens da Igreja”. Movido de raiva, o tirano o condenou a morrer assado na grelha. O jovem Lourenço no momento de sua execução ainda manteve a alegria. Aos olhos do mundo, mostrando sua profunda fé, sem perder o humor, disse: “Podem me virar, este lado já está bom”. Uma multidão assistia este martírio. Muitos se converteram a Jesus Cristo. Por ironia, São Lourenço tornou-se o padroeiro dos humoristas, e também dos cozinheiros e churrasqueiros.
Mais tarde em sua homenagem foi construída uma imponente Basílica em Roma. Atualmente como lembrança deste notável santo, os fiéis deram o nome à uma chuva de meteoros, as Perseidas, de “Lágrimas de São Lourenço”. Em certos anos este fenômeno se apresenta de forma intensa e visivelmente radiante no céu noturno do dia 11 a 13 de agosto.
As narrativas da época relacionadas aos santos parecem exageradas, mas na verdade os santos são exagerados – o que os tornam seres extraordinários em busca da fé e do sagrado e justamente uma luz no caminho dos homens, simples mortais.
Glayer Jordão