
Na fazenda de meus tios, acordávamos bem cedinho, em bando, alvoroçados para disputarmos com os bezerros o primeiro leite do dia. Acordados pelos mugidos, despertávamos quem ainda sonhava e corríamos para o curral. Cada qual com sua caneca, seu açúcar e seu Nescau. Enfileirados, seguíamos os passos de quem ia à frente, pois poderíamos pisar em lugares não recomendados e os pés se enchiam de bosta de vaca.
Quando acontecia, a reação era imediata, os menores choravam, os maiores riam e a confusão chegava antes do sol nascer. O silêncio reinava em seguida, quando alguém avisava que as vacas, com o barulho, não dariam mais leite.
Então, a aventura prosseguia na maior naturalidade e satisfação. E quem se sujasse que fosse se limpando pelo caminho, esfregando os pés no mato, e que tomasse mais cuidado da próxima vez. Afinal, tínhamos algo por demais salutar nos esperando. A bela vaquinha nos aguardava para saborearmos do seu néctar branquinho e espumado, misturado com felicidade, tantas vezes repetida.
O curral ficava perto da casa, mas tínhamos que seguir o caminho iluminado ainda pela lua e as poucas estrelas, vencer os obstáculos e transpor enormes porteiras que eram abertas e depois fechadas pelo derradeiro do grupo. Quase ninguém queria ficar por último, pois tinha que se ocupar com a sua caneca ou copo e ainda sustentar o fechamento da porteira. Mas nada nos fazia desistir, nem o gado pelo caminho, nem aquele resto de sono que fora interrompido, nem mesmo o frio, a geada que nos fazia soltar, o tempo todo, fumaça pela boca e pelas narinas. Não havia obstáculo, apenas a vontade e o prazer de viver, a cada dia, todos os dias, aquela prazerosa aventura coletiva. Desfrutávamos, primos e primas, em plenas férias, a essência e a inocência da idade em alguns copos de leite tirado na hora, alimentando vidas.
Dividíamos o açúcar e o chocolate e aguardávamos ansiosos o momento de chegarmos até aos pés da vaca. Uns nem arriscavam tal aproximação, outros se esforçavam para tirar o leite e se sentirem vitoriosos e corajosos entre os demais. Na espera, ficávamos soltando fumaça pela boca, admirando o feito e sentindo a friagem que se mostrava na ponta vermelha dos narizes esfumaçados. Ao bebermos o leite de cada manhã, alimentávamos nossa infância e nutríamos nossas esperanças. Sabíamos que, quando queríamos uma coisa, tínhamos que buscar, enfrentando as dificuldades que iríamos encontrar pelo caminho. Juntos era mais fácil e mais divertido.
Quando volto à fazenda de meus tios, sinto gosto de infância. Nela a vida gargalhava e corria solta entre nós; nela havia cheiro de felicidade no ar.
Antonio Trotta – Jornalista, escritor e poeta
@atrottamg














Também tive esse sabor de infância!
Hoje, minha história são memórias que trago.
Memórias olfativas ,daquele cheiro de curral, do cheirinho do café quentinho na caneca de alumínio , lembrança visual da vaca malhada ,da qual desfrutavamos seu gordo leite espumado, memória tátil, em acariciavamos seu bezerrinho que amarrado com sedam nas pernas da mãe dividia seu alimento conosco.
Agora, divido com você escritor, essa memória feliz de uma saudosa infância.
Que linda infância e saudosa memória. Foram momentos marcantes. Parabéns.
Artigos como esse mexe com memórias afetivas de muita gente. Principalmente quando descritos com amor leveza e romantismo como é peculiar de Trotta. Parabéns.
Grato pelas suas palavras. A infância é um marco na vida da gente. Primos e primas aprendendo a viver e a conviver. Até hoje alimentamos esse carinho.
Momentos como esse são inesquecíveis, marcamos em nossa lembrança. Como é bom ser criança e conviver com crianças, pena que a gente cresce. Parabéns Trotta.
Marca mesmo. A gente leva para a vida adulta. Hoje convivemos com entusiasmo a nossa amizade.
Gratidão por compartilhar tantas memórias das doces e inocência infância… Me fez voltar no tempo onde criança até meus 13 anos onde eu meus irmãos e primos ficávamos as férias inteiras de fim de ano …me fez sentir o cheirinho da florada dos cafezais… cheiro do mato ao cair da noite, muitos tombos por tentar ficar montada no cavalo que insistia em não galopar, hoje lembro e volta e meia na rodas de conversas entre família vamos lembrando e te garanto que chega doer no peito algumas lembranças…eu sinto saudades de meu avô Mentores, pura sabedoria… posso dizer que tive uma doce infância, mesmo que às vezes achava que era chato…mas te garanto repetiria tudo novamente.☘️✨
São lembranças bem vividas e bem sentidas. Nossa criança livre ainda brinca e curte toda essa experiência inusitada.
Amo suas reflexões
Minha infância foi descer ladeira de carrinho de rolimã, ralar o joelho jogando bola na rua e ouvir o famoso: entra logo, seu pai está chegando e vai tomar banho. Mas a velhice está caminhando pra ser com os pés cheios de bosta de vaca, galinha e sem ninguém gritando pra tomar banho. Mas leitinho com Nescau era bom na cidade também.
Pois é. Urbano e rural. Calmaria e correria. Cada um com seus mistérios e aprendizados.
Contei para o meu netinho diversas estórias da roça de nosso tempo. Do carro de boi cantando, do curral esperando o leite, do queijo mineiro frito na chapa do fogão de lenha.
O frio naquela época era intenso. Mas nós saíamos assim assim mesmo.
Pisar na bosta? Sempre acontecia. A gozacao éra geral.
Bons e felizes tempos.
Vidas e lembranças, saudades e esperanças. Passar para as novas gerações uma experiência infanto-juvenil deliciosa. Muito bom.
Morando provisoriamente no 74 da vida fico a recordar cenários da infancia como esse fielmente descrito . E sinto’-me reconfortante. Parabéns ao autor
As idades passam e a infância permanece em nós. Sempre há uma criança dentro se nós.
Nas minhas memórias da infância o cheiro de fumaça do fogão a lenha da minha avó sempre está presente! Obrigada pelas lembranças….
Sempre. A infância marca todos os sentidos e sentimentos. Boas lembranças.
Lindo texto me vi nos tempos que lidava com fazenda e acompanhei meus filhos nessa jornada que descreve . Um presente as memórias afetivas.
Memórias afetivas são sempre bem-vindas. Elas nos enchem de alegrias e grandes satisfações. Na infância estamos cheios delas. Gratidão!
Memórias afetivas ! Cura !
Oi. Sim. E cura muito. Santo remédio para a alma e para a memória.
Lindas memórias… Parabéns
Grato. Delas vivi minha infância e levei para minha vida adulta.
Com seu texto, pude sentir e viver isso como se estivesse passando um filme… Contudo, posso afirmar, não foi mera coincidência,foi verdadeiramente vivido e apreciado com muito amor pelos seus tios, primos, funcionários entre outros…
Obrigada,
belas e verdadeiras recordações de Infância
Todos tivemos este prazer e alegria em passar férias na fazenda dos tios, triste constatar que tudo se foi, até às águas das cachoeiras. Fica a saudade, que tantas vezes dói